Falei com a tua mãe dia desses sobre a saída de casa dos filhos de um casal de amigos. E aí nos demos conta que também está chegando o dia de a nossa caçula ir embora, sem alarde, na maciota, para não nos machucar quando for a hora de partir em busca do quinhão que a vida destina a quem corre atrás. Nós sabemos, ainda que contrariados, que os filhos são para o mundo, que não nos pertencem, são relíquias emprestadas por Deus, com prazo de devolução já estipulado na agenda Dele. Khalil Gibran dizia que somos somente o arco e que nossos filhos são as flechas. Compete a nós arremessá-las. Assim será.
Um dia eles partirão em busca da lua que os pais não puderam alcançar. E não nos iludamos: todos partem. É tudo uma questão de tempo, ou de oportunidade, tanto faz. Na despedida, com o coração estraçalhado, ajudaremos a carregar as malas e diremos que a casa é um lugar para se voltar, e não para morar, na secreta esperança de que o argumento os comova e retornem quando menos se espera. Mas o que mais nos assusta na inevitável separação, filha, é que talvez encontres searas de ilusões e desenganos nas impiedosas selvas urbanas, sem que a gente possa fazer muita coisa para te proteger.
Isadora, o mundo que te espera lá fora não é o mesmo que mora dentro do nosso apartamento. Haverá o brilho das purpurinas, do borbulhar dos espumantes, mas também vais encontrar pela frente alamedas com flores de cardo e espinhos. A mesma mão que afaga pode ser também aquela mesma que apedreja, já anteviu Augusto dos Anjos, o poeta da descrença científica. Viver é a arte de escolher o caminho certo, mas, para tanto, não existe cursinho e nem intensivo que ensine, e a vida só se torna justa, só tem sentido, para quem sofre menos. Minha mimosa, saibas que a tua mãe e eu não temos a menor ideia de como iremos reagir quando a nossa morada não for mais o teu endereço. Afora, claro, a certeza de que os nossos olhos choverão cachoeiras por dentro.
Vai ser uma barra, já sabemos de antemão, passar pelo teu quarto e não mais te ver com aquele pijama surrado, as meias listradas cobrindo apenas parte dos pés, sentada na cama, as costas na parede, computador no colo e o celular em cima da perna para os contatos mais urgentes com as amigas e colegas. Pelo chão, um mar de folhas soltas, os cadernos da faculdade e algum livro da Clarice Lispector, misturados à desorganização das pinturas e batons, isso sem falar, claro, nas roupas espalhadas por tudo (a organização nunca foi o teu forte, né?). Quando o teu pai chegar em casa de volta do trabalho e gritar "Isaaaaaa" ao abrir a porta, como faz sempre, e ninguém responder o "oiiiiiiiiiii", é que saberemos a dimensão precisa de toda a nossa melancolia. Arrumar o quarto do filho que foi embora é a tradução mais exata da palavra saudade, como cantou Chico Buarque em Pedaço de Mim. O teu irmão Santhiago, tu bem sabes, é um guri meio rústico, gosta de mato, bichos e não leva muito jeito para expressar os afetos mais íntimos, mas podes ter certeza que a paixão que ele sente por ti só é comparável à nossa. Conhecendo como a gente conhece o Santhi, não vai ser fácil pro piá suportar na maçã do peito a separação da única irmã, mesmo que ele tenha saído de casa antes de ti em busca de trabalho e na esperança de buscar um lugar ao sol que nem a todos aquece.
Ah! E um último pedido do pai: quando fores embora, leva na bagagem qualquer camiseta das minhas, a que tu mais gosta de usar, para que eu siga te abraçando quando fores dormir longe de mim agora e na ausência duradoura que serei um dia.